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A ARTICULAÇÃO POLÍTICA DAS MULHERES TRANS CONTRA A ESCASSEZ DE DADOS 

Num país onde X% da população se identifica como transexual ou travesti, sendo que X% se veem como mulher, pelo menos X% delas estão expostas a violência. Outro dado revela que, por conta do preconceito, X% evitam frequentar hospitais. Não só isso, a evasão estudantil atinge X% dos jovens que fazem parte dessa categoria, enquanto outras X admitem terem sido expulsas de casa.

O “X” no lugar dos números poderia ser erro de digitação, mas são precisamente os dados oficiais disponíveis sobre a comunidade trans no Brasil: nenhum. Entende-se por dados oficiais aqueles produzidos pelo governo federal a fim de identificar, mapear e organizar informações sobre a população geral. São esses números, coletados por órgãos como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que garantem uma base sólida de informação para o desenvolvimento de políticas eficazes.

Ainda assim, questionários como o Censo demográfico, dentre outros aplicados pelo Instituto, não contemplam a identificação de gênero. Combatendo esta realidade está a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), órgão que conduz suas próprias pesquisas, faz levantamentos e mapeamentos que visam elucidar a situação da pessoa trans no Brasil, se articulando junto às universidades, coletivos políticos e pesquisadores. Em 2020, o órgão chegou a contabilizar quase 200 assassinatos de pessoas trans no país a partir de um cruzamento de informações midiáticas.

Em 2018, a ANTRA oficiou uma Defensoria Pública da União (DPU), no Rio de Janeiro, solicitando por meio de ação civil que o órgão incluísse questões de identificação de gênero, levantando assim as especificidades da população trans no próximo Censo, à época previsto para acontecer em 2020, adiado em um ano por conta da pandemia de Covid-19. A resposta foi uma negativa.

O IBGE alega que está “acompanhando as movimentações internacionais”, mas ainda não tem previsão de análise da pauta, tampouco sabe dizer como encaixá-la dentro de seus principais trabalhos. Para Luciano Tavares Duarte, técnico em pesquisa e gerente do Censo, a transexualidade ainda é encarada como tabu:

 

 

 

 

 

 

 

 

Sem números exatos que exponha os problemas enfrentados por essa minoria enquanto cidadãos, levando em consideração até mesmo as diferenças que se configura entre a mulher e o homem transgênero, bem como os tipos de identificação de gênero, fica difícil exigir demandas frente ao legislativo. O enorme vazio dessas estatísticas deixa espaço para o questionamento: como criar políticas públicas efetivas para uma camada da sociedade invisível aos olhos do Estado?

Para Erika Hilton (PSOL), primeira vereadora trans eleita em São Paulo, o mais difícil é sensibilizar a camada que ainda leva o preconceito para o campo político;

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O déficit quantitativo não anula as experiências individuais, que provam que a situação de vulnerabilidade está longe de ser um caso isolado. Dados esparsos, coletados por municípios ou de modo independente por entidades e acadêmicos, buscam unir as peças do quebra-cabeça para formar um retrato sobre essa realidade, ainda que num recorte centralizado.

De acordo com levantamento feito pelo Centro de Estudos e Cultura Contemporânea (CEDEC) junto com a Coordenação de Políticas LGBTQIA+, que entrevistou cerca de 2 mil pessoas trans na cidade de São Paulo, pelo menos 48% delas se identificam como mulheres, dessas menos de 10% tem o ensino superior completo, e embora outras fontes de renda tenham sido identificadas, 34% das mulheres trans recorreram a prostituição.

A amostragem é pequena quando se trata de uma região com mais de 12 milhões de habitantes, ainda assim expõe problemas pontuais que carecem de soluções imediatas. Na mesma esteira entram pesquisas como a realizada pelo Consórcio Internacional do Grande ABC, que mapeou a população trans das sete cidades (Santo André, São Bernardo, São Caetano, Mauá, Ribeirão Pires, Diadema e Rio Grande da Serra); tendo recebido menos de 200 respostas, encontrou um dado preocupante: 65% desse total alegam ter pensado em suicídio.  

 

O desejo de acabar com a própria vida é muito recorrente nas consultas sociais do programa Sobreviver, projeto que presta assistência psicológica para pessoas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade. Mar Facciolla, graduanda em psicologia e voluntária do projeto, explica que muitas mulheres trans também se automutilam. "A falta de acesso à direitos básicos como moradia, empregabilidade, saúde e até mesmo documentos, intensifica o sofrimento", afirma Facciolla.

Documentos como estes mencionados auxiliam servindo como ponto de partida, mas evidenciam ainda mais a problemática da escassez; sabe-se pouco sobre essa população em termos socioeconômicos e a falta de abrangência acaba por deixar de lado muitas variáveis, sem mencionar a margem de erro que pode levar a propagação de incongruências. Exemplo disso é o dado errôneo sobre a expectativa de vida da pessoa trans ser de 37 anos, número esse que não provém do cálculo oficial da estatística de vida, mas de históricos que mostram que essa é a média de idade de pessoas trans assassinadas. 

 

Além disso, muitos desses relatórios também são enviesados a partir do preconceito, assumindo a relação das pessoas trans com a marginalização, sem considerar outros fatores como migração, poder aquisitivo, etc. Como propõe a socióloga e pesquisadora especialista em gênero e sexualidade, Letícia Lanz, primeira candidata trans à prefeitura de Curitiba; para ela ainda existe uma falta de amplitude na elaboração desses documentos:

 

 

Durante boa parte de sua vida, Lanz se dedicou em estudar o fenômeno da transgeneridade, publicando obras como “A cor da roupa: Introdução aos estudos transgêneros”. Assim como ela, outras mulheres que compõem o movimento político da luta trans encontraram nos estudos científicos uma forma de redesenhar a realidade.

A jornalista e pesquisadora, Symmy Larrat, atual presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Intersexos (ABGLT), a maior da América Latina, é mais uma das estudiosas que promovem diversos trabalhos no campo da representatividade e da diversidade de gênero. Symmy, que já conheceu todas as faces da marginalização, acredita que o caminho para mudança é ocupar espaços e focar em aplicar os direitos já conquistados.

Um fator a se considerar é que boa parte desse apagão se deve ao fato de que o Brasil tem uma base conservadora muito presente na máquina pública, com evangélicos e católicos ocupando mais de 20% do congresso, o que reflete uma sociedade estruturalmente enquadrada no pensamento que já reafirma padrões por meio da crença na cisgeneralidade como norma designada por ordem divina.

Mas seria essa a resposta primária do ódio? Para Leona Wolf, Cientista Social especializada em Direitos Humanos, Diversidade e Violência, a religião é uma grande antagonista neste processo.

 

É por meio da educação e dos múltiplos estudos conduzidos por mulheres trans em todo o Brasil que a realidade ainda precária e excludente está sendo, aos poucos, modificada. Leona também está à frente desta reinvindicação como coordenadora do Grupo Prisma, coletivo da Universidade Federal do ABC (UFABC) que tem promovido ações sociais e foi o principal responsável pelo programa de cotas estudantil para pessoas trans na universidade, pioneiro e agora replicado por outras instituições de ensino. Ela ressalta que é preciso manter a política da educação e defender a permanência das pessoas trans nesses locais.

"A universidade não está preparada para a pessoa trans, que tem que se refazer o tempo todo nesse ambiente, aprendendo a lidar também com a questão da integração, que é difícil a partir do momento que não se pode usar banheiro, que professores e colegas são hostis. Mas é esse esforço que lá na frente pode garantir uma mudança efetiva até mesmo na questão da produção de dados", completa Leona.

A luta da população trans no Brasil é antiga, mas foi entre o período da ditadura militar e da epidemia de AIDs, nas décadas de 70 e 90, que os grupos se articularam pressionados pela situação de violência e preconceito, lançando luz sobre questões fundamentais e abrindo os primeiros debates acerca da condição social dessa comunidade.

Foi nessa época que surgiu a primeira iniciativa de política pública para pessoas trans que se tem notícia no Brasil; uma casa de acolhimento que recebia trans e travestis marginalizadas por serem portadoras de HIV. A casa, localizada no Bexiga, em São Paulo, foi batizada de “Palácio das Princesas” e era comandada por Brenda Lee, mulher trans que, visando atender uma necessidade urgente, mudou a história de muitas outras mulheres que passaram pelo seu lar.

Por meio de uma parceria com a Secretaria da Saúde do Estado de S.Paulo, Brenda Lee, aos poucos, transformou o terreno numa extensão do Hospital Emílio Ribas, que passou a tratar das pacientes soropositivo naquele espaço. Mais tarde, o local se transformou numa ONG e foi rebatizado para Casa de apoio Brenda Lee, após esta ser brutalmente assassinada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A artista plástica, pesquisadora e ativista política Neon Cunha, primeira mulher trans a pedir morte assistida para garantir o direito de usar a constituição em seu processo de retificação de documentos, conta sua trajetória desde a infância até o momento em que decide “existir”. Em suas próprias palavras, veja um retrato da história de luta, ativismo, engajamento social, estudo e ressignificação pessoal:

 

 

 

 

 

 

 

De acordo com a ANTRA, as eleições de 2020 registrou cerca de 294 candidaturas de pessoas trans em todo o Brasil, um número recorde que vem aumentando com o passar dos anos. Desse total, 263 eram travestis e mulheres trans vinculadas a partidos de esquerda e de direita. Ainda que não seja possível mensurar a agenda partidária de cada uma delas, sua presença deve ser notada. Como já dizia um velho ditado brasileiro: “quem não é visto, não é lembrado”.

O esforço conjunto feito, em grande parte, por mulheres trans ao longo das décadas, culminou no desenvolvimento de ações pontuais de assistência, acolhimento, inclusão e políticas públicas. Hoje, alguns Estados no Brasil contam com programas que, apesar da pouca abrangência, funcionam e oferecem mais possibilidades para as vítimas desse apartheid social. 

Brenda Lee e paciente no Palácio das Princesas
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